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Story Publication logo July 17, 2019

The Sateré-Mawé Retake Ancestral Land Threatened by Loggers and Land Thieves (Portuguese)

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Benito Miquiles, a Sateré man. Image by Matheus Manfredini. Brazil, 2019.
English

Indigenous groups in the Brazilian Amazon are preparing themselves as the economic frontier is...

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Image by Bernardino Miquiles. Brazil, 2019.
Image by Matheus Manfredini. Brazil, 2019.

É alta noite na aldeia Fortaleza, às margens do rio Andirá, na divisa dos estados do Pará e do Amazonas, quando cessa o canto dos guerreiros Sateré-Mawé. O silêncio ali é feito de cantos outros, entoados por anfíbios, insetos e símios que, como o guariba (Alouatta caraya), emitem sons assustadores para ouvidos não habituados à floresta. Pouco a pouco, os ruídos noturnos dão lugar à sinfonia das aves e a aldeia desperta. A jovem liderança Benito Miquiles confessa que aquelas foram horas insones, povoadas por expectativas em relação à viagem por começar, e por dores decorrentes do Waumat, o ritual de passagem do qual havia participado no dia anterior.

Pela 15ª vez, o jovem havia enfiado as mãos em luvas com dezenas de formigas tucandeiras, as portadoras de uma das mais dolorosas ferroadas entre os insetos. Benito fora à aldeia Fortaleza não só para reforçar sua identidade cultural por meio do ritual, mas em busca de apoio dos parentes. Ele vive às margens do rio Mariaquã, numa região historicamente ocupada pelo povo Sateré-Mawé, mas que ficou fora dos limites da Terra Indígena Andirá-Marau, homologada em 1986. Os indígenas reivindicaram junto à Fundação Nacional do Índio (Funai), em 2002, a correção dos limites da TI, para que ela corresponda a área que, de fato, ocupam.

O recente avanço de madeireiros, garimpeiros e grileiros, e a eminente invasão do território, tornam a demanda ainda mais urgente. O relatório que embasou o registro, encaminhado por servidores da Funai local, além de atestar a ocupação ancestral, recomendou a correção do traçado da terra indígena para além das margens do Mariaquã. Dezessete anos, porém, não foram suficientes para que o órgão indigenista desse, sequer, início ao processo de adequação da linha demarcatória.


Indígenas Sateré-Mawé partem para reocupar as terras do rio Mariaquã. Imagem de Matheus Manfredini. Brasil, 2019.

Na aldeia Fortaleza, Benito relatou aos parentes as constantes tentativas engendradas pelos grileiros para expulsar os indígenas que vivem na aldeia Campo Branco, no rio Mariaquã. O jovem teme a possibilidade de uma tragédia ante o isolamento da comunidade, e a crescente tensão pelo controle do território. “Nós precisamos de ajuda porque estamos muito ameaçados”, disse. Um a um, os vizinhos declararam apoio e se ofereceram para acompanhar Benito até o rio Mariaquã e estabelecer, estrategicamente, novas aldeias de vigilância nas terras onde viveram também seus avós e bisavós. Dico, o sisudo tuxaua de Fortaleza, destinou a única voadeira da aldeia para a empreitada. Érik Batista, guerreiro que também havia participado do ritual na véspera, embarcou na companhia do pai e do irmão caçula. “Sempre ouvi falar que o Mariaquã foi a primeira morada dos Sateré, antes de virem para os rios Andirá e Marau. Depois de meter a mão na luva [de tucandeiras], eu me sinto fortalecido para participar desse movimento”, afirmou.


Mapa por Maurício Torres.

Nossa equipe de reportagem acompanhou Benito e os guerreiros que a ele se uniram durante a viagem rumo ao rio que, na língua Sateré-Mawé, significa “porto da roça de Maria” (ver mapa). Saímos de Fortaleza pouco depois das 8h da manhã e, em menos de meia hora, fomos surpreendidos por um primeiro obstáculo: uma árvore recém caída interrompia a passagem pelo rio Andirá. Desembarcamos e, uns equilibrados sobre o tronco, outros dentro d’água, levantamos e empurramos a embarcação por cima do tronco. A próxima parada foi a aldeia vizinha, Vila Nova. Lá, diversas lideranças aguardavam o grupo para trocarem informações sobre a política anti-indigenista do governo Bolsonaro e discutir possíveis estratégias de enfrentamento.

Sentados a uma mesa comprida, sob uma estrutura feita de palha e madeira, lideranças de diferentes aldeias pediram a palavra. Enquanto isso, recostada a uma das pilastras, a mulher do tuxaua Cândido, liderança de todas as aldeias do alto Andirá, preparava o guaraná. Numa cuia com água, a anciã raspava a barra de guaraná numa pedra. Em seguida, passava a cuia para o tuxaua, que bebia o guaraná e repassava o recipiente em sentido horário.


A bebida feita de guaraná é consumida sempre que um grupo Sateré se reúne para alcançar um consenso. O rito é conhecido como çapó. Imagem de Matheus Manfredini. Brasil, 2019.

Os Sateré-Mawé são conhecidos como o “povo do guaraná”. O ato de preparar e consumir a bebida em grupo, sempre que surge a necessidade de discutir os rumos a se tomar, é conhecido como çapó. De acordo com o antropólogo Gabriel Alvarez, que estuda os Sateré-Mawé, o çapó é um ritual sem música, que representa a boa conversa, o poder não coercitivo. “Segundo me contou um ancião, aquilo que se fala durante o çapó tem que ser realizado, o que se deseja acontece”, explica o antropólogo. Naquela reunião, o principal desejo em pauta era a retomada dos territórios tradicionalmente ocupados às margens do rio Mariaquã.

Por que retornar?

“Nossos pais, nossos avós viveram lá, então aquela terra é nossa e nós vamos ficar lá. Já tem uma aldeia, e nós vamos agora com mais 20 famílias”, disse o tuxaua Cândido. Jacó, tuxaua de Vila Nova, ouviu do avô, Servo Miquiles, que os indígenas foram embora dos rios Mamuru e Mariaquã por causa de uma epidemia que estava dizimando a população. Servo Miquiles nasceu numa comunidade chamada São Roque, no rio Mariaquã, e pediu ao neto que liderasse o movimento de retorno à antiga aldeia. Desde a primeira vez que Jacó voltou à área, identificou locais onde viveram os ancestrais, a partir de vestígios de roças e capoeiras. Como a viagem por rio é muito cara, Jacó tentou, nos últimos anos, abrir uma picada na floresta para ligar, por terra, o rio Andirá ao Mariaquã, atravessando o divisor de águas. Em linha reta, são aproximadamente 40 quilômetros, que poderiam ser percorridos em até 4 ou 5 dias a pé, depois de aberto o caminho.

Além do desejo de retornar à terra ancestral, os Sateré-Mawé agem movidos por uma necessidade. “A nossa população está crescendo e, aqui no Andirá, é preciso ir cada vez mais longe para conseguir uma caça”, explica Adelino Batista, da comunidade de Bom Jardim. “Já está faltando espaço aqui para os indígenas. Por isso precisamos nos espalhar”, diz Perpétua Miquiles, professora da aldeia Vila Nova. Por causa do modo de vida dos indígenas, que tiram o sustento da floresta com baixo impacto, eles precisam de grandes extensões de terra. E, segundo o ecólogo Ricardo Scoles, é falsa a ideia intensamente propagada de que existe muita terra para pouco índio: “as áreas indígenas têm densidade menor do que 1 habitante por km2 e apresentam excelentes indicadores de qualidade ambiental. Entretanto, o bom manejo de seus territórios implica o uso pouco intensivo e que se estende por vastas áreas”, explica.


Vista aérea de uma aldeia típica Sateré-Mawé. Imagem de Matheus Manfredini. Brasil, 2019.

As ações de retomadas não são peculiaridade dos Sateré-Mawé. Em diversas partes do país, outros povos adotam a prática, como ressalta a antropóloga Daniela Alarcon: “Num cenário de reiteradas violações de direitos territoriais indígenas, em que o Estado não cumpre seu papel na regularização fundiária dessas áreas, as retomadas de terra têm se destacado como forma de ação política dos povos indígenas, tanto no sentido de pressionar pela garantia de seus direitos, pelo avanço e conclusão de processos demarcatórios, mas também como forma de garantir a atualização de seus modos de vida próprios, enfrentando de forma direta o esbulho e as suas consequências”.

Talvez, o que nos dê a melhor medida do que significa para os Sateré-Mawé o controle e a vigilância de seu território no vale do Mariaquã seja o fato de Jacó, mesmo sendo o tuxaua de uma das aldeia mais bem servidas por saúde, transporte e educação, decidir mudar-se com a família, sem apoio de qualquer instituição, para outra aldeia que começaria do zero, abrindo a grossa capoeira onde seus antepassados faziam as roças. Áreas que, para nós, em nada se distinguem da floresta virgem. Entretanto, nem ele, nem sua família mostram um mínimo de abalo na determinação. Jacó entra na embarcação, acompanhado da esposa e da neta, ansiosas por conhecer o futuro lar.


Jacó, tuxaua da aldeia Vila Nova. O avô de Jacó, Servo Miquiles, pediu ao neto que desse início ao movimento de retorno ao rio Mariaquã. Imagem de Matheus Manfredini. Brasil, 2019.

A jornada rumo a Campo Branco

A viagem dura quatro dias. Da aldeia Vila Nova até Parintins, seguimos no barco de transporte coletivo que serve aos índios, e que levava cerca de três vezes a capacidade de passageiros, em condições muito precárias. A voadeira emprestada pelo tuxaua Dico foi arrastada pelo barco de linha até Parintins. Lá, nossa equipe alugou uma embarcação para acompanhar o restante do trajeto. A voadeira recebida por nós era diferente da que contratamos no dia anterior – menor, muito mais velha, e com um motor que, desde logo sabíamos, muito dificilmente daria conta da viagem. O piloto tampouco apareceu. Decidimos pilotar nós mesmos a embarcação pelo rio desconhecido, mas seguindo a voadeira dos índios que, simbolicamente, ostentava o nome de “Bom Socorro”.

Durante o primeiro dia de viagem, subindo o rio Mamuru, deparamo-nos com emblemas daquilo que ameaça os Sateré naquela região. Passamos por imensas balsas carregadas de toras de madeira. Um piloto que trafega constantemente pelo rio comentou que costuma ver, durante a noite, três a quatro balsas acopladas umas nas outras, saindo da área indígena repletas de madeira. “Os madeireiros entram na área, fazem o que bem entendem, enchem as balsas e passam como se tudo fosse deles. É isso que os índios querem evitar. E pode ter certeza de que vai haver resistência”, afirma o piloto que, por questões de segurança, prefere não se identificar.


Uma balsa carregada de troncos desce o rio. Os Sateré temem que suas terras ancestrais no rio Mariaquã, erroneamente deixadas de fora da Terra Indígena Andirá-Marau, possam ser invadidas por grileiros. Imagem de Matheus Manfredini. Brasil, 2019.

Depois de escurecer, alcançamos uma aldeia Sateré no rio Mamuru, também localizada fora da terra indígena, e ali pernoitamos. Os anfitriões prontamente nos cederam uma casa para armar as redes e acenderam lamparinas para que nos guiássemos na escuridão. Partimos ao amanhecer e à tarde chegamos à aldeia às margens do rio Mariaquã.

Na aldeia Campo Branco, fomos recebidos pelo festivo tuxaua Bernardino, pai de Benito. Foi a Bernardino que um homem branco, que se apresentou como “dono da terra”, ofereceu uma compensação para que ele fosse embora. Apelou a um expediente muito comum desde o período colonial: primeiro, ofereceu uma garrafa de cachaça e, depois, colocou sobre a mesa um maço de dinheiro. Como Bernardino recusara a oferta, começaram as pressões. De acordo com Sérgio Butel, servidor da Funai lotado em Parintins, um empresário do Centro-Sul foi até o escritório do órgão indigenista solicitar que a Funai retirasse os indígenas da área e apresentou um mapa que comprovaria que era o “verdadeiro proprietário”. “Foi surpresa geral. Informamos a ele que a área era objeto de uma demanda antiga do povo Sateré e que já havia na Funai/Brasília um processo de pedido de correção dos limites da terra indígena”, comentou.

A grilagem especializada

Ante a informação de que a terra ocupada pelos Sateré teria um “dono”, fomos buscar os registros oficiais sobre a ocupação local. Não localizamos matrículas de imóveis nos cartórios de registro imobiliário, o que provaria a existência de alguma propriedade na região. Entretanto, ao abrirmos a base do Cadastro Ambiental Rural (CAR), notamos um completo divórcio entre o que se encontra no chão e o que dizem as bases oficiais. Se vimos florestas ocupadas por índios e ribeirinhos, o site ligado ao estado do Pará mostra uma área de 70 mil hectares toda dividida em 36 lotes individuais, com um suposto “proprietário” em cada um, inclusive, sobre a aldeia do tuxaua Bernardino. Aliás, nesses sistemas de informação, os Sateré-Mawé inexistem. “Precisamos criar políticas públicas para dar visibilidade às comunidades tradicionais, sobretudo diante da vigência do CAR, que é um instrumento autodeclaratório e que, muitas vezes, se sobrepõe às comunidades que efetivamente e historicamente ocupam a terra, mas, por não terem acesso a tecnologia e assistência técnica, não produzem informações para os sistemas oficiais do Estado”, diz Ione Nakamura, titular da Promotoria Agrária do estado do Pará.

Embora não tenha nenhuma validade para comprovar a propriedade da terra, o CAR vem sendo inadequadamente utilizado por grileiros como um documento que os vincula à terra. “Eles declaram que são donos de terras públicas e, depois, inadequadamente empoderados com o CAR, partem para expropriar os ocupantes (inclusive povos e comunidades tradicionais) do local”, completa Eliane Moreira, promotora de Justiça do Ministério Público do Estado do Pará, que tem uma interpretação semelhante à de Nakamura.


Sonia torra farinha na aldeia Campo Branco. Os Sateré vivem da caça, da pesca e de produtos extraídos da floresta. Imagem de Matheus Manfredini. Brasil, 2019.

Centenas de outras reivindicações semelhantes à dos Sateré aguardam análise da Funai. O órgão obedece a alguns requisitos na hora definir os casos prioritários. O primeiro deles é a antiguidade da solicitação. O segundo, a situação de vulnerabilidade social do grupo, evidente na afirmação do tuxaua Bernardino: “não temos escola, acesso a transporte ou atendimento médico aqui. E estamos isolados de tudo, expostos à truculência daqueles que querem se apropriar das nossas terras”. Ainda assim, o fato de haver um território desse povo demarcado e próximo relega o processo às últimas posições de prioridade, especialmente num contexto político que enfraquece cada vez mais o órgão indigenista.

Ante a falta de perspectiva de uma ação do Estado, vários grupos indígenas têm recuperado territórios tradicionalmente ocupados e enfrentado atividades predatórias e ilegais que estavam se desenrolando nessas áreas, como desmatamento, caça e pesca ilegais. “Nesse sentido, os impactos dos processos de retomada são diversos e profundos e podem compreender até uma forma de reescrita da História na contramão da historiografia hegemônica, de modo que essas ações não dizem respeito só aos grupos que as protagonizam, mas a toda a sociedade brasileira”, conclui Alarcon.

Ao fim do primeiro dia em Campo Branco, somos alertados para evitar o rio e tomar banho no igarapé que desagua no Mariaquã quase em frente à aldeia. As águas barrentas desse rio, pouco acessadas pelo homem branco, estão repletas de jacarés, piranhas e peixes-elétricos como o poraquê (Electrophorus electricus), que é capaz de uma descarga de 500 volts, suficiente para matar um homem adulto. Bernardino, a família e os visitantes se alimentam de açaí, peixe e carne de caça. Sentados à mesa farta, os indígenas combinam subir o rio até a antiga aldeia São Roque no dia seguinte. Para eles, limpar o local da futura aldeia não é apenas recomeçar a vida numa região em que a sobrevivência material é mais fácil porque mais farta. É também unir-se em resistência a outros Saterés que, como Benito e Bernardino, correm o risco de serem mortos numa porção de floresta distante de qualquer presença do Estado.


Cristopher é o filho caçula de Bernardino. O tuxaua da aldeia Campo Branco acredita que os Sateré precisam de suas terras ancestrais no rio Mariaquã para acomodar de maneira sustentável a crescente população indígena. Imagem de Matheus Manfredini. Brasil, 2019.

Durante a longa viagem e em nossa permanência na aldeia, gravamos entrevistas com vários indígenas. Apenas um deles se recusou: Pedro, um velho senhor da aldeia Fortaleza, com quem viajamos por dias. No dia em que partimos de volta à Parintins, fomos acordados pelo filho de Pedro, que vinha nos avisar da mudança de ideia do pai. Diante da câmera, o idoso nos emocionou ao entoar uma canção de ninar que costumava ouvir da avó na infância. Os versos falavam sobre as águas do Mariaquã, pelas quais todos navegaríamos no instante seguinte. Os indígenas subiram o rio, e nós seguimos a direção oposta, rumo a Parintins. Nosso receio de que a embarcação não suportasse a viagem se cumpriu. Ficamos à deriva por mais de 5 horas, com o motor fundido, até sermos resgatados por um pescador. Durante o tempo de espera, um som quase constante rompia o silêncio na imensidão do rio: o barulho de tratores e motosserras trabalhando ao longe. Em nós, reverberava a canção de Pedro, como símbolo da resistência e da preservação da memória de seu povo.